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sábado, 26 de dezembro de 2015

Sobre vidros de conserva e mangas "espada"

Para ler ao som de quinteto para piano em lá maior, op. 114 A Truta D. 667, de Franz Schubert.

(Essa não é uma crônica () sobre culinária.)
Um quadro na parede diz muito.
(pausa dramática)
O modo como você cuida da casa diz muito sobre você.

Cena 1, Allegro Vivace: uma moça caminha em uma corda bamba amarrada em nuvens. Sua grande mochila só cabe uma flauta.

Maria tem uma flauta e muitos CD's. Seus olhos sempre parecem estar em órbita. Só organiza seu quarto em ciclos. Terminou um semestre? Vou dobrar algumas roupas. Terminou o ano? Vou fazer uma faxina. O coração de Maria é separado em compartimentos e guarda pedacinhos de pessoas. De vez em quando ela faz uma faxina. Todo dia de manhã ela faz café. Ferve água três vezes porque sempre a esquece no fogo. O ritual se prolonga, sua cabeça nas nuvens e seu coração na importância do café da manhã. Certamente ela gostaria de dividir o pão. 

Cena 2, Andante: um menino joga futebol de botão com o seu pai. Em determinado momento o tabuleiro se transforma em uma tela branca que passa trechos desconexos de filmes. A última cena é o desfecho do filme Ladrões de Bicicleta.

Jacó é carnívoro, mas só come carne quando alguém a cozinha para ele. Tem mil livros, todos desorganizados em uma estante qualquer. Também tem muitos filmes, mas esses estão cuidadosamente organizados. Seus favoritos são os russos. Jacó acha o cinema transcendental e a cidade de São Paulo um globo colorido que sempre oferece mil possibilidades Compartilha com seu pai o amor pelo futebol e tem um pôster da seleção brasileira em cima da sua janela. 

Cena 3Scherzo: Presto: a mãe de Jorge prepara o almoço para a família enquanto ele se esconde debaixo da mesa, acariciando sua guitarra de brinquedo. Imagina-se como um rock star famoso. Sai debaixo da mesa como se entrasse em um palco. Jorge está nu.

Jorge estuda matemática e espera conseguir ensinar para as pessoas a magia dos números (é bom informar que Jorge não acredita em magia, milagre e coisas místicas. Ele acredita no amor, mesmo que diga timidamente, e isso já é um milagre no século em que vivemos).  Jorge é um rapaz que não fala muito, exceto quando bebe. Ele gosta de cerveja bem gelada, porque na verdade não gosta de cerveja, gosta de "fazer um social" e de se refrescar. Costuma arrumar a casa em pensamento, para só colocar em prática dias depois. O rapaz também guarda muitas coisas, é um típico acumulador (o ventilador quebrado ainda enfeita a sala), tem um coração muito grande e não consegue se desfazer das memórias.

Cena 4, Andantino e Allegro giusto: Mãe e filha brincam á beira mar. Um raio colorido atinge a mãe, que começa a gritar sem parar com a filha. Depois de três horas de monólogo, a mãe desaparece. A menina caminha sozinha. Durante o pôr do sol ela encontra um concha gigante e decide usa-la como casa. Sobrevive criando ficções sobre o mundo que existe lá fora.

Dizem que Nina é uma moça calma, mal sabem o turbilhão que há dentro dela. Por esse motivo, de vez em quando algumas de suas frases saem desconexas, provocando estranhamento e riso nas pessoas. Nina rói as unhas pois nasceu com um pássaro dentro do peito que insiste em bater asas pedindo para sair. Nina tem ansiedade crônica. Ela ama os livros e sonha em ganhar a vida escrevendo ficções, mas nunca conseguiu escrever uma história com mais de oito páginas. Nina também ama os cactos, pois acredita que eles são incompreendidos. 
Em sua casa, ela coleciona coisas de avó. Nutre um afeto muito grande por velhinhos e velhinhas, mas nunca teve muito contato com a mãe da sua mãe. Às vezes ela cria histórias (que nem sempre vão para o papel) sobre uma velhinha com óculos de Janis Joplin que aos domingos faz bolo de chocolate com chá mate. 
Nina, quando está triste, faz antepasto de berinjela e guarda em vidros de conserva para que Maria, Jacó e Jorge provem sua comida. À noite compra mangas "espada" para comer enquanto lembra de sua mãe (dona Luma costumava dizer que durante sua gravidez só comeu arroz e manga espada).

Um comentário:

  1. Ah, que da hora. Acho bonito ser o "andante".

    Da sonata no. 11 para piano de Mozart, a parte que eu mais gosto é o andante , mesmo todo mundo conhecendo e gostando mais da Marcha Turca (que é melhor mesmo)

    E cinema transcendental é o melhor cinema

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